Há cem anos atrás o 1.º Governo Republicano declarava “guerra” à Igreja
Há cem anos atrás, o Governo Provisório que geria o país desde o triunfo do 5 de Outubro na capital, faz sair diversa legislação que tem como objectivo prejudicar claramente o poder e a tradição religiosos no País.
Um exemplo é o Decreto de 18 de Outubro de 1910, publicado no Diário do Governo do dia seguinte (n.º12, 19/10/1910, p. 97), onde em nome da República decretava o seguinte:
«Artigo 1.º / É abolido o juramento com carácter religioso, qualquer que seja a sua fórmula. / Artigo 2.º / As pessoas que houverem de exercer acidental, temporária ou permanentemente quaisquer funções de carácter ou interesse público, para as quais se tem exigido até agora a prestação de juramento, somente são obrigadas e autorizadas a afirmar, empenhando a sua honra, que cumprirão com fidelidade as funções que lhes são conferidas. / Artigo 3.º / A fórmula desta afirmação será: Declaro pela minha honra que desempenharei fielmente as funções que me são confiadas. / Artigo 4.º / As testemunhas farão, antes do depoimento, a mesma declaração ao respectivo juiz, que poderá explicar-lhes, se o entender necessário, que ela as obriga a dizer a verdade e as sujeita, em caso de falta, às penas de testemunho falso. / § único. / As demais pessoas que, faltando propositadamente a esta declaração, deixarem de cumprir os seus deveres, ficam sujeitas às respectivas sanções penais e disciplinares. (…) / Artigo 7.º / É dispensada toda e qualquer declaração aos estudantes que se matriculem em estabelecimentos de instrução. / Artigo 8º / Em todos os casos não referidos neste diploma, em que as leis anteriores davam qualquer eficácia às afirmações sob juramento, este será substituído pela declaração sob palavra de honra. (…)».
No que respeita à igreja, o essencial é a abolição da religiosidade de todo e qualquer juramento quer nos tribunais quer em quaisquer outros actos oficiais, ou seja, trata-se de mais uma etapa no estabelecimento da laicização da sociedade portuguesa. Nesta data é também abolido o ensino da doutrina cristã nas escolas.
Aliás, a “batalha” contra a religião católica começou logo, no dia 8 de Outubro de 1910, ainda havia tantas vilas e cidades portuguesas que nem sequer tinham proclamado a República nos seus municípios e já o governo republicano em decreto desta data dava ordens de expulsão aos Jesuítas (foram então expulsos 359 jesuítas portugueses, 118 dos quais eram missionários que trabalhavam nas colónias portuguesas) e determinava o encerramento dos conventos. São novamente expulsas de Portugal todas as ordens religiosas, dando cumprimento à apregoada laicização do Estado, uma das bandeiras da propaganda republicana.
A 20 de Outubro de 1910, o Núncio Apostólico abandona Lisboa, no dia 3 de Novembro seguinte estabelece-se a Lei do Divórcio, que vai também contra os preceitos do Direito Canónico e, a 25 de Dezembro de 1910, é estabelecido o casamento como contrato de validade civil.
Temendo a agitação social, e neste tempo “quente” pós revolucionário o Ministro da Justiça, Afonso Costa, chega ao ponto de mandar prender os Padres que fossem encontrados na rua, fundamentando essa ordem na prevenção de abusos. Não admira, pois, que no dia 10 se encontrassem presos 128 sacerdotes (82 no Forte de Caxias e 46 na cadeia do Limoeiro) e 233 freiras (no Arsenal da Marinha).
Mas a hierarquia da Igreja Católica Portuguesa não ficou parada. Logo na véspera de Natal de 1910 foi distribuída uma pastoral colectiva subscrita pelo episcopado português onde denunciava a violência e o sectarismo anticatólico do novo regime.
E no dia 23 de Fevereiro de 1911, os Bispos tomaram novamente posição, em pastoral colectiva, contra o fim do juramento religioso, a expulsão das Congregações (devo lembrar que logo no dia 8 de Outubro de 1910), a lei do divórcio e restantes medidas anticlericais postas em prática pela república.
Afonso Costa, que exercia o importante cargo de Ministro da Justiça, proibiu a sua leitura nas Igrejas. A resistência a estas medidas estendeu-se a todo o país, nos anos de 1911 e 1912, levando o Governo a punir os prevaricadores com prisões e desterros para fora das respectivas dioceses.
Efectivamente no dia 20 de Abril de 1911 (ainda o Governo Provisório tinha liberdade absoluta para fazer o que entendesse, já que não havia qualquer órgão representativo que vigiasse e limitasse o seu poder) era publicada a Lei de Separação da Igreja do Estado, que logo no seu 1.º artigo, afirmava que a “A República reconhece e garante a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e ainda estrangeiros que habitarem o território português».
Distantes um século destes acontecimentos revolucionários, cada vez se aprofunda mais a convicção de que os republicanos foram longe de mais na sua conflitualidade contra a Igreja, pese embora a influência conservadora que a Igreja exercia nos fiéis que frequentavam regularmente os templos católicos.
Este sentimento é partilhado hoje por diversos historiadores da época contemporânea. A título de exemplo, apresentamos apenas os nomes de Fernando Rosas e Luís Torgal.
O primeiro numa conferência que proferiu no dia 10 de Abril de 2010, em Gondomar, no âmbito de uma acção de Formação para professores de História, da iniciativa do Centro de Formação Júlio de Resende, intitulada “(Re)encontros com a República”, afirmou que a “questão religiosa” foi um dos erros da República: «a Lei de Separação do Estado da Igreja de 1911, foi considerada um vexame e uma inutilidade, criando um forte antagonismo social, sobretudo no mundo rural».
Luís Torgal é ainda mais peremptório na sua análise. De um artigo seu sobre este assunto, transcrevemos (e subscrevemos) a seguinte passagem.
«Estas acusações e acções, depois conjugadas com as consequências da participação de Portugal na I Guerra Mundial (1914-18), forneceram lastro para o crescimento no país de um amplo e unificado movimento de renascimento católico de cariz “revolucionário conservador” protagonizado por sectores clericais e laicos, que estaria já em gestação desde os inícios do século XX. Este movimento não deixou, aliás, de utilizar o emergente fenómeno popular das aparições (ocorridas entre Maio e Outubro de 1917) e do culto de Fátima, que foi crescendo de forma cada vez menos discreta e espontânea ao longo dos anos 20, como instrumento eficaz de propaganda ao serviço das causas da recristianização nacional, da defesa das liberdades religiosas, sociais e políticas da Igreja e da rejeição absoluta do republicanismo demoliberal e laico e, mais tarde, do comunismo. Tal movimento de revivalismo católico superiormente estimulado e controlado pela mais alta hierarquia da Igreja contribuiu, de resto, para derrubar a Primeira República e depois para sustentar até ao fim o Estado Novo (ou «fascismo à portuguesa») de Salazar e de Marcello Caetano.»