A 1.ª Reforma ortográfica da língua portuguesa
Iniciativa republicana com um século
Os governantes da Primeira República mexeram praticamente em tudo o que tinha a ver com a vida em sociedade, passando pela instrução e cultura, política (com as suas instituições e simbolismos, designadamente a Bandeira e o Hino Nacional), religião, festividades, dias feriados, exército, impostos e moeda.
No que respeita ao ensino primário, a República prometeu muito, mas não foi capaz de cumprir tudo, porque nunca houve estabilidade suficiente nem dinheiro para que conseguisse fazer tudo o que pretendia, até porque, entretanto, sobreveio a Primeira Guerra Mundial em que Portugal se viu metido, em África (Angola e Moçambique) e na França. Mesmo assim, esta reforma começou por dividir o país em 75 círculos escolares e tornar a instrução primária efectivamente obrigatória, às crianças de ambos os sexos. A escola era vista como a principal ferramenta para conseguir a fazer a transformação mental do país, criar cidadãos instruídos e capazes de uma vida política responsável.
A reforma do ensino primário surge no Decreto de 29 de Março de 1911 que cria três escalões para o ensino primário: elementar, complementar e superior.
O elementar era obrigatório para todas as crianças de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os sete e os catorze anos que residissem até 2 km do edifício escolar. Os outros dois escalões eram facultativos.
O ensino primário elementar tinha a duração de três anos, dos sete aos nove anos, e, relativamente aos seus conteúdos, tinha quatro áreas privilegiadas do saber: literárias, científicas, artísticas e técnicas.
«O primeiro grupo incluía a Leitura e a Escrita, Noções de Geografia e Educação Social, Económica e Civil; o segundo grupo, as quatro Operações Aritméticas, o Sistema Métrico, Geometria Elementar, notícias dos produtos comuns da natureza e conhecimentos dos fenómenos naturais mais vulgares; o terceiro grupo, Desenho e Modelação, Canto Coral e dicção de Poesias; o quarto grupo, Higiene, Ginástica, Jogos, Trabalhos Manuais e Agrícolas». Era bastante ambicioso.
O Decreto previa ainda que em Agosto de cada ano, as Juntas de Paróquia (mais tarde passaram a ser denominadas de freguesia) tivessem a obrigação de efectuar o recenseamento de todas as crianças em idade escolar, nas respectivas freguesias, incorrendo em multas se o não fizessem. Esta exigência do recenseamento obrigatório das crianças em idade escolar tinha como objectivo evidente combater o analfabetismo que tinha taxas muitíssimo elevadas, sobretudo entre as pessoas do sexo feminino. Por sua vez, os pais e encarregados de educação eram obrigados a apresentá-los às matrículas.
A par das escolas oficiais, o Estado também aceitava a existência das escolas particulares.
Findo o ensino primário elementar, e se a criança não quisesse ou não pudesse continuar os seus estudos no Liceu, havia a possibilidade de frequentar o ensino primário complementar, com duração de mais dois anos, ou seja dos dez aos doze anos. Tratava-se, em qualquer caso de uma frequência facultativa e gratuita.
Depois do ensino primário complementar, seguia-se o ensino primário superior, igualmente facultativo e gratuito, com a duração de três anos, dos doze aos catorze anos. O programa curricular deste era bastante exigente e só alunos muito bons o conseguiam frequentar com sucesso. Mas este nível do ensino primário só foi criado em 1919, depois de finda a Primeira Guerra Mundial.
Os republicanos acreditavam que conseguiam melhorar a qualidade do ensino primário através da descentralização (daí a divisão do país em maior número de círculos escolares) e, sobretudo, da melhor preparação científica e pedagógica dos professores primários e da melhoria das suas condições económicas.
No que respeita à língua portuguesa e perseguindo objectivos que visavam a sua “normalização e simplificação” procederam àquela que seria a primeira Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa.
A primeira legislação (portaria regulamentadora da reforma ortográfica) saiu no dia 1 de Setembro de 1911 – fará este ano um século – e previa um prazo de aplicação de três anos. O decreto que torna obrigatória a sua utilização é de 12 de Setembro de 1911.
Esta reforma modificou substancialmente a ortografia da nossa língua e, partindo dela, seguiram-se uma série de acordos e reformas, como a que está actualmente em curso.
Até ao início do século passado, quer no Brasil, quer em Portugal utilizava-se uma ortografia baseada nos étimos greco-latinos, o que fazia com que muitas palavras tivessem uma grafia substancialmente diferente daquela a que estamos habituados hoje: phosphoro (fósforo), orthographia (ortografia), exhausto (exausto), estylo (estilo), lyrio (lírio), prompto (pronto), diphthongo (ditongo), anno (ano), assignado (assinado), catholico (católico), etc.
Entretanto, alguns estudiosos da língua portuguesa haviam reflectido, já no decurso do século XIX, sobre o assunto e feito propostas tendentes à sua simplificação. Enquadra-se, neste âmbito, as “Bases da Ortografia Portuguesa”, de 1885, cujos autores foram Aniceto dos Reis Gonçalves Viana e Guilherme de Vasconcelos Abreu.
Mas, para entrarem em vigor foi preciso esperar mais de um quarto de século, foi preciso proclamar o novo regime republicano, na sequência do triunfante 5 de Outubro de 1910.
Efectivamente, o governo do novo regime, interessado em alargar a escolaridade a todas as crianças de ambos os sexos, achou pertinente a ideia de simplificar a escrita da língua pátria. Por isso, em Fevereiro de 1911, nomeou uma Comissão incumbida de estudar uma ortografia mais simples que, uma vez aprovada, passaria a ser utilizada nos textos oficiais e no nosso sistema de ensino.
Essa Comissão integrou as seguintes personalidades: Adolfo Coelho, Borges Grainha, Cândido de Figueiredo, Carolina Michaëlis, Gonçalves Guimarães, Gonçalves Viana, José Joaquim Nunes, Júlio Gonçalves Moreira, Leite de Vasconcelos e Ribeiro de Vasconcelos. As bases dessa primeira Reforma Ortográfica inspiraram-se de perto nas já referidas propostas de 1885.
Treze anos mais tarde, ou seja em 1924, a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa “negociaram” uma ortografia comum no português dos dois países, acabando por se chegar a um acordo, assinado em 1931, segundo o qual o Brasil adoptava a reforma ortográfica portuguesa de 1911.
Esta reforma, como já se disse a primeira do género (ao longo do século XX, far-se-iam mais algumas), teve os seus imediatos contestatários, alguns deles grandes vultos da literatura portuguesa como foi o caso, por exemplo, de Fernando Pessoa.
Concretamente, a reforma ortográfica republicana procedeu às seguintes alterações: as consoantes dobradas desapareceram (anno passou a ano; exceptua-se, entre vogais, os casos de rr e ss se o seu valor for r ou s); normalizou-se a utilização do acento agudo, grave, circunflexo e do trema; os símbolos ph, th, rh, y, e ch passaram a uma única letra, respectivamente t, f, r, i e c ou qu (conforme a letra que se segue) se tiver o som k.
Convenhamos que estas alterações simplificaram significativamente o português escrito mas não foram propriamente o antídoto para diminuir significativamente o analfabetismo português.