Um pequeno oásis de democracia direta na Península Ibérica
Desde o período da Reconquista Cristã que existiu no Norte de Portugal, fazendo fronteira com o atual município de Montalegre, um pequeno território independente dos reinos vizinhos, que teve o nome de Couto Misto. Tinha à volta de 27 km2, três aldeias (Santiago, Rubiás e Meaus) e durou do século X até à 2.ª metade do século XIX.
Viveu em termos políticos aquilo que se chama uma república de democracia direta, em que o poder era exercido por 3 juízes eleitos diretamente pelos respetivos habitantes (um por cada aldeia). Leis próprias e vários privilégios, tornaram o sítio uma curiosidade, por comparação com os reinos estruturados de Castela e de Portugal.
Este modo de gerir a “coisa pública” é ainda mais de estranhar num tempo em que os senhores nobres ou coroados eram quem, à força das armas, da lei ou da crença, exerciam sobre os povos plena autoridade.
Outrora o Couto Misto foi uma terra próspera, em resultado do contrabando que se fazia ao longo do caminho privilegiado, na ligação dos dois importantes reinos ibéricos. Entre os privilégios de que usufruíam os seus habitantes, vale a pena mencionar o caso da opção pela nacionalidade portuguesa, espanhola, ou mista. Segundo consta esta questão da nacionalidade escolhia-se do seguinte modo: no dia do casamento, o noivo tinha de fazer um brinde a um dos reis (de Portugal ou de Espanha), diante de todos os vizinhos. A maioria deles, contudo, não brindava e marcava o “X” na parede (que significava optar por mixto) porque, em caso de delito, seriam julgados pelos três juízes do Couto. Nas três aldeias ainda há diversas casas com um “P” (quando optavam pela nacionalidade portuguesa), um “E” (se optavam pela nacionalidade espanhola), ou um “X”.
Os habitantes de Couto Misto tinham ainda os privilégios seguintes: isenção de taxas, impostos ou tributos; licença de porte de arma; direito de constituir o seu próprio governo e de fazer as suas leis; podiam conceder asilo a delinquentes portugueses e espanhóis, se o crime praticado não tivesse sido de sangue; podiam cultivar tabaco; não estavam sujeitos à prestação de serviço militar, nem para Portugal nem para o Espanha; a estrada que atravessava o território do Couto Misto não estava sujeita ao pagamento de qualquer portagem ou outro tipo de imposto, era totalmente livre para a passagem de pessoas e transporte de quaisquer mercadorias.
Esta pequena república que existiu na fronteira dos reinos de Portugal e de Espanha até há 147 anos era um Estado autónomo, reconhecido e respeitado como tal, e hoje, com poucas centenas de habitantes, é uma pequeníssima parte de Trás-os-Montes e outra da Galiza.
A religião praticada era, obviamente, o catolicismo. Uma única paróquia, a de Santiago, sediada na igreja com o nome do patrono, pois por ali passava também um dos caminhos de Santiago. No altar-mor, para além do Crucifixo central, estão as imagens de S. Tiago e de Nossa Senhora do Pilar, em retábulo dourado que vai do chão ao teto.
Mas a igreja está associada à “arca da lei” que seria guardada na sua cripta. A arca, feita em madeira de carvalho, precisava de três chaves (uma de cada representante eleito por cada aldeia) para ser aberta. Era aí que se guardava a “lei”. Eram aí arrecadadas todas as atas com as deliberações dos três juízes. Mas também aí se arquivava toda a documentação importante da república, nomeadamente os registos dos atos eleitorais dos representantes de cada aldeia ou as cartas régias (provenientes dos monarcas portugueses e espanhóis).
Os arquivos portugueses sobre a fundação de Couto Misto terão sido destruídos pelo terramoto de Lisboa, por isso, os primeiros documentos escritos que temos na Torre do Tombo, datam apenas do século XIII.
Esta situação administrativa de exceção terminaria com o Tratado dos Limites de Lisboa, negociado entre as duas coroas ibéricas, em 29 de setembro de 1864, que faria desaparecer para sempre o “Estado” do Couto Misto, cuja anexação formal ao território espanhol (na sua maior parte) ocorreria no dia 23 de junho de 1868.