O mês de junho de há um século foi passado na expectativa de que Portugal conseguisse um crédito de 50 milhões de dólares, capaz de resolver o grave problema financeiro que a participação na Primeira Grande Guerra provocou. Recordo que o Governo Provisório da República, por iniciativa do seu ministro das Finanças, José Relvas (o mesmo que proclamou, na varanda da Câmara Municipal de Lisboa, a República, ao princípio da manhã de 5 de Outubro de 1910), havia procedido a uma importante reforma monetária, criando, em maio de 1911, o escudo que substituía o real e valia mil vezes mais do que ele. Portugal conseguiu nos anos seguintes saldar a dívida pública herdada da Monarquia e encerrar as contas públicas com superavit. Mas a entrada de Portugal na Guerra perturbou enormemente a vida financeira do país e seria este problema que em 1928 levaria Salazar ao poder, primeiro como ministro das Finanças e, depois de 1932, como Presidente do Conselho de Ministros.
EMPRÉSTIMO DE 50 MILHÕES DE DÓLARES
A Questão Financeira foi intensamente sentida pela opinião pública portuguesa há cem anos (in Ilustração Portuguesa, n.º 800, de 18 de junho de 1921)
O fim da Guerra não trouxe sossego e tranquilidade aos antigos países beligerantes, pelo contrário afirmou-se tragicamente um conjunto de problemas, que passaram pelo agravamento do endividamento público, pelo desemprego de milhares de soldados desmobilizados, por problemas de abastecimento, pela inflação, desvalorização da moeda, agitação social e instabilidade política. Vários países com regimes demoliberais não foram capazes de resolver eficazmente estes problemas e caíram em regimes ditatoriais como foi precisamente o caso de Portugal, apesar de nessa altura (1926) alguns indicadores já permitissem a antecipação de melhores dias (em termos políticos e financeiros) para o regime português.
Mas fiquemo-nos por agora pelo mês de junho de 1921. Consultemos as informações relativas à questão financeira. Os dados são inseguros. Parece obedecer-se ao adágio popular “o segredo é a alma do negócio”! O jornal “Diário de Lisboa”, com a data de 11 de junho de 1921, na sua página 2, com o título “Vida Financeira” e os subtítulos “Repercussão do emprestimo dos cincoenta milhões de dollars” e “A operação que o governo português conseguiu nos Estados Unidos – Á volta dos câmbios” dá conta das hesitações e complexidade que há neste tão momentoso assunto e contesta que tal operação esteja envolvida em demasiado “silêncio” por parte das autoridades governativas:
«S. ex.ª o sr. ministro das finanças ainda não reputou chegada a oportunidade de revelar ao paiz o que de verdade haja sobre o assunto. Se é para evitar uma abalada cambial que impressione mais a nova praça, nada mais louvavel. Mas é para discutir se não seria acertado lançar desde já um bocadinho de agua na fervura da especulação, que não dizemos que se tenha feito mas é natural que venha a fazer-se com o afrouxamento produzido na ultima semana».
Esta questão chegou a gerar polémica entre a própria imprensa republicana, nomeadamente entre o Diário de Lisboa e O Século.
Na edição de 13 de junho de junho de 1921, o Diário de Lisboa, na sua primeira página escrevia: «O SECULO, que ainda há pouco elevou o seu preço de venda para $10, anda agora convidando o comercio para uma baixa geral de preços. Tudo leva a crer que o nosso presado colega não se feche na prudencia de Frei Tomás. Isto há de ser-lhe tanto mais fácil, quanto é certo que é ele agora quem domina os câmbios, fazendo deles uma espécie de papagaio de papel.
Muito desejaríamos que esta campanha de agora não venha a ter o mesmo exito da campanha pavorosa contra a tribu moageira, de que resultou, como presente para nós todos, o celebre pão João Luiz Ricardo, que era negro, indigerivel e rugoso como lixa».
Na mesma data, o Diário de Lisboa volta a informar os seus leitores sobre a questão do eventual empréstimo de 50 milhões de dólares, referindo que se negociava uma operação financeira com um grupo de banqueiros americanos. Entretanto, e ainda sobre o mesmo assunto, informava que o insigne republicano Afonso Costa se encontrava em Paris para intermediar essa questão.
E a polémica sobre o assunto prosseguia nos jornais “O Século” e o “Diário de Lisboa”. Neste último, e a este propósito, escrevia-se na 1.ª página da edição de 14 de junho, sob o título «Nós e “O Seculo” ou uma Calunia que se desfaz», o seguinte: «Lemos as palavras que nos apontavam á execração publica e nunca nos sentimos tão superiores a O Seculo.
Qual a razão de assim se atirar a nós? É que julga que queremos impedir a melhoria cambial que há uns dias se vem acentuando – melhoria que, na sua estulticia, ele julga inventada por ele para salvar o paiz de apuros e as finanças da empresa que o edita.
Ora nós, muito antes de O Seculo querer explorar em seu proveito o que é simplesmente um resultado da livre acção dos factores económicos e financeiros, já tínhamos falado duma próxima valorização do escudo, fustigando tambem os excessos da especulação sem escrúpulos. Foi, porem, o nosso eco de ontem que fez pular O Seculo.»
Ainda no Diário de Lisboa de 14 de junho, a propósito do empréstimo dos 50 milhões de dólares e das indemnizações de guerra da Alemanha a Portugal, é feita uma entrevista a Barbosa de Magalhães, membro da Comissão de Reparações da Sociedade das Nações.
Nesta entrevista Barbosa de Magalhães, um prestigiado advogado republicano que foi deputado constituinte, membro do governo e, mais tarde, bastonário da Ordem dos Advogados Portugueses, refere que a dívida da Alemanha a Portugal foi fixada em 0,75 do total que a Alemanha tem de pagar aos vencedores a título indemnizatório, quer em ouro, quer em bens. Entre os bens a que Portugal tem direito, estão – refere ele - “magnificos guindastes e outros aparelhos para o porto de Lisboa”. As reivindicações portuguesas baseavam-se nos prejuízos causados pelos submarinos alemães que afundaram muitos navios portugueses, antes e depois da declaração de guerra alemã, em 9 de março de 1916.
Quanto ao empréstimo de 50 milhões de dólares, Barbosa de Magalhães, nesta entrevista, dá a entender que está completamente acordado: «Um grupo de banqueiros americanos emprestou ao nosso governo esses milhoes de dolares (…) sem caução. É um emprestimo normal, cujas prestações serão pagas em determinados prazos». A entrevista serviu ainda para confirmar a posse para Portugal de todos os navios alemães apreendidos em fevereiro de 1916, o que esteve na origem da declaração de guerra da Alemanha a Portugal: «Eles já aí estão quase todos no Tejo e os que faltam chegarão em breve».
Já quase no fim do mês (29 de junho) o Diário de Lisboa dá nota de que circulam informações segundo as quais estariam a ser ultimadas as negociações para o empréstimo de 50 milhões de dólares. Mas os títulos que coloca ao cimo da peça jornalística evidenciam sérias dúvidas: “Que há sobre o emprestimo? Estão ultimadas as negociações?” E no último parágrafo concluem: «Repetimos – damos o nosso aplauso incondicional ao emprestimo, se ele é um beneficio verdadeiro para nós e não um acto impensado, cheio de ameaças para a nossa existencia. O nome do sr. dr. Afonso Costa é um belo sintoma de que podemos acalmar as nossas inquietações. Mas como ninguem que tenha a cabeça no lugar, deve ceder a outrem, por comodidade, o estudo dos assuntos que lhe interessam, nós, para que felicitemos, conscientemente, os homens que intervieram nas negociações do empréstimo, exigimos que nos mostrem as condições e clausulas que aceitámos».
Esta questão revelar-se-ia bastante complexa e frequentemente manifestaram-se desconfianças e suspeitas de haver "interesses" envolvidos em tal operação financeira, que acabou por não se realizar. Tão importante assunto chegou a fazer parte da ordem de trabalhos da Câmara de Deputados, tendo envolvido a intervenção de Cunha Leal, onde se anteciparam os perigos de uma derrocada financeira.